Eu queria ser amigo do Lázaro Ramos — o negro no audiovisual.

(texto originalmente publicado na minha newsletter quinzenal, sobre tudo, sobre nada, enviada para os leitores no dia 30 de Janeiro de 2021. Para assinar o conteúdo da newsletter basta clicar aqui e para conferir o arquivo de textos aqui.)

Victor Ramos
12 min readJan 31, 2022

Nessa edição comento um pouco sobre o audiovisual negro e suas ramificações partindo de minhas observações pessoais e de minha pesquisa para no mestrado. Tentei criar uma linha de argumentação entendendo o audiovisual como um poderoso meio de difusão de ideias, consequentemente formador de nossa subjetividade e justamente por isso as intervenções de algumas obras como a novela Lado a Lado, Mister Brau, Malhação: Viva a Diferença e Malhação: Vidas Brasileiras, só pra citar produções da última década no Brasil, são elementos fundamentais para questionar o lugar do negro dentro do imaginário dos meios de comunicação de massa. Comento também sobre os produtos para embranquecimento de pele e qual a relação que as mídias tem com a difusão deles. Por último indico textos e outras coisas que tem alguma relação com os assuntos que abordei.

Na novela Lado a Lado, quando Isabel (Camila Pitanga) retorna de Paris, rica morando agora em uma mansão elegante, a mesma em que trabalhou como empregada doméstica nos anos de luta, sempre se apresenta com elegantes vestidos. Seda pura, como enfatiza a sua arqui-inimiga Berenice (Sharon Menezes) em um encontro no Morro da Providência, local de moradia do pai de Isabel e de seu grande amor Zé Maria (Lázaro Ramos). O retorno da personagem marca a segunda fase dessa novela que, entre outras coisas, tenta recriar um período histórico pouco explorado pelo nosso audiovisual, o imediato pós abolição.
Isabel nasceu livre, graças a lei do ventre livre, mas ainda criança via seu pai trabalhar como escravizado em uma fazenda, isso marcou para sempre a vida da moça. Apesar dos infortúnios, típico de um bom e velho folhetim, a moça consegue prosperar, levando o nosso samba para ser reconhecido em Paris, virando uma dançarina no teatro de revista parisiense. Seu retorno ao Rio de Janeiro, lugar cravado de preconceitos, acontece por saudade dos que aqui deixou e que permaneceram no sofrimento de lidar com o fim da escravidão apenas no papel.
O cuidado com que a novela apresenta a personagem em seu retorno, como uma mulher elegante, mas ainda forte, é sintomático de uma falta, a do personagem negro visto além do sofrimento. Isabel desfila pelo Rio de Janeiro, cidade que ainda não sabe como se comportar em relação ao novo sistema político, assim como sua outra inimiga Constância (Patrícia Pilar) a ex baronesa, com suas roupas de seda pura desenhadas sob medida para a moça, mostrando toda a elegância de uma Camila Pitanga em um dos seus melhores papéis na televisão. A elegância é tanta que até cortando batata para fazer o jantar não se desfaz do vestido de seda nem do penteado, que acentuam seus cabelos cacheados.

Essa cena me remeteu rapidamente ao filme Os Amores de Sylvie, um melodrama que busca retratar uma história de amor e seus percalços, tal qual os romances água com açúcar que faziam a cabeça dos cinemas nos anos 1950. Mas o filme de 2020, lançado pela Amazon traz um importante diferencial, um amor negro. Ao recriar uma época em que os negros não eram bem vindos não só no cinema, o diretor queria usar o audiovisual para transformar um período histórico difícil, o filme retrata — ainda que pouco- através de uma personagem algumas marchas e manifestações organizado por negros, mas seu intuito não é o de ressaltar os momentos difíceis, mas, evidenciar que negros também poderiam viver esses amores água com açúcar. Toda a sua direção trabalha para isso, assim como na telenovela Lado a Lado, seus criadores voltam a um período do passado levando o olhar do presente e dizendo: eu também posso!
Sylvie (Tessa Thompson), personagem que dá título a obra, em uma cena chave usava um elegante vestido Channel, desses que associamos logo a Grace Kelly em Janela Indiscreta ou a Marilyn Monroe em Os Homens Preferem as Loiras. Mas dessa vez não era uma loira que estava usando, era Tessa Thompson, mulher negra que se tivesse nascido na década de ouro do cinema holywoodiano não teria acesso a tal figurino.

Essas duas cenas, Isabel em sua cozinha vestida como se fosse a uma festa e Sylvie sentada na cadeira de chefe, são muito similares e revelam uma ideia que muitos realizadores negros querem transmitir: nós negros podemos e merecemos viver uma vida mais leve, podemos viver uma história de amor, podemos ser donos de nosso próprio destino. O audiovisual não precisa ser um lembrete eterno do que já vivemos, do que fomos no passado. Podemos voltar nosso olhar para o passado e ressaltar outros sentimentos que não a dor apenas. Essas construções de futuros — e passados — diferentes precisam estar na mira de realizadores e principalmente dos estúdios e produtoras.
Lado a Lado foi uma novela dos sonhos, como define Lázaro Ramos, justamente por tentar mostrar isso. Por encarar o passado do nosso povo e contar outras histórias que não a da chibata. Fomos e somos heróis, nos negaram muita coisa, mas podemos agora de cabeça erguida conquistar tudo que nos foi retirado e o audiovisual é uma importante ferramenta para isso, é nisso que acredito, é para isso que eu luto.

Também comecei a assistir Mister Brau, tarde eu sei, mas sempre é tempo. Na série o casal Michele (Taís Araújo) e Brwon (Lázaro Ramos) são uma dupla de cantor-dançarina que fazem sucesso no mundo inteiro, eles são mega-popstars.
No primeiro episódio o casal se muda para uma mansão num condomínio fechado, logo na primeira cena nos deparamos com uma situação explícita de racismo, mas encarada com um tom humorístico. Na piscina estão uma Taís Araújo e Lázaro Ramos, casal na vida real e interprete do casal na série, apaixonado comemorando a compra da casa nova e todo o seu sucesso. Mas, não é o que pensam os vizinhos, chamando a segurança do prédio por achar que estavam presenciando um assalto.
A situação resolvida com humor entrelaçada com diálogos explícitos sobre o racismo, dá o tom da série de forma geral. Ao longo dos episódios vemos as diversas situações envolvendo seus vizinhos brancos e o casal famoso, porém barulhentos e expansivos.
Mister Brau é mais uma tentativa de falar abertamente sobre o racismo, evidenciando nesse caso que não importa o quão rico a pessoa seja, o racismo não deixará de afeta-lo. A escolha da narrativa de criar situações absurdas e usar de saída para resolve-las o humor, atrelado ao carisma de Lázaro, faz com que seja muito mais palatável o consumo, atingindo muito mais pessoas.

Lázaro fala sobre alternativas que precisamos encontrar para levar narrativas negras ao grande público, o seriado encontrou seu caminho, pode não ser o melhor, mas abre um espaço num tipo de produção que é pouco explorado, o das séries nacionais.
Talvez, o programa seja o primeiro nesse formato a abordar questões raciais em primeiro plano, não deixando que a temática se feche apenas nisso. Penso que assim como a novela Lado a Lado, esse tipo de produção vinculado na maior emissora do Brasil, com poder de chegar a quase 100% dos lares do país, segundo recentes dados do IBGE, faz com que as necessárias discussões sobre racismo e outros problemas raciais, evoluam e se espalhem, chegando a pessoas que não tem acesso as outros meios de informação. É claro que é uma alternativa muito pontual, considerando que esse tipo de programa não está no ar corriqueiramente. Lado a Lado por exemplo é uma novela de 2012 e depois dela demorou cinco anos para que outra produção abordasse a vida de personagens negros de forma aberta e honesta em 2017 com Malhação: Viva a Diferença.
Ter essas produções na Globo é muito importante, ter profissionais da área empenhados em desenvolver essas narrativas é fundamental para o nosso audiovisual. Mostrar a real cara do Brasil, contando outras histórias para além da trajetória do homem e mulher brancos de classe média vivendo em São Paulo, é uma necessidade urgente. Representar as população tradicionais ainda é uma pauta que tá mais atrasada do que a dos negros, dentro das grande emissoras. E mais uma vez reforço, cabe a nós enquanto espectadores cobrar, cabe a nós enquanto profissionais ou pesquisadores do audiovisual encontrar soluções. Todos só tem a ganhar com isso.

Um dos textos indicados em uma das disciplinas que estou fazendo esse semestre (ainda estamos por aqui literalmente em 2020.2), foi um artigo sobre os produtos de embranquecimento de pele, em sua maioria consumido por mulheres negras de países africanos, sendo o maior mercado a Nigéria.
Nesse artigo Margaret Hunter analisa a partir de três viés o uso desses produtos, procurando entender qual a motivação das pessoas para fazer uso desses cosméticos, em sua maioria mulheres. Essa indústria não é apenas voltada para a população negra, mas também é amplamente consumido em países da Ásia e na Índia, onde inclusive a autora cita um famoso ator que estrela uma grande campanha.
Isso me chamou muito atenção, primeiro porque não estava tão familiarizado com esses produtos e foi um choque descobrir quão populares eles são, movimentando uma indústria milionária. Além disso, segundo a pesquisa da autora, a mídia é um vetor importante para entender a motivação para embranquecer a pele. Através de diversos produtos audiovisuais enaltecendo a beleza da pele clara, transmitindo a mensagem de que para alcançar o sucesso é necessário ser branco.
Uma das justificativas mais encontradas foi a de que era mais fácil conseguir empregos tendo a pele mais clara. Com o avanço da globalização fica cada vez mais disputado os altos cargos entre pessoas africanas negras e pessoas de outros continentes com traços próximo ao europeu, levando em conta que o número de consumidores destes produtos é maior no continente africano, não sendo exclusividade de lá.
Com esse artigo pipocando na minha mente fui assistir ao documentário Skin, disponível na Netflix, em que a atriz Beverly Naya, retorna a Nigéria, seu país de origem, para investigar sobre o uso desses produtos. Ela conversa com mulheres que já usaram os cosméticos e se arrependeram e com outras que usam e mesmo com os efeitos adversos, variando de manchas na pele até câncer, continuam fazendo uso.
Uma das entrevistadas quando questionada sobre o porque de continuar a usar os produtos respondeu que a depender da vontade do marido pararia ou não, caso estivesse se relacionando com um homem que gosta de mulher de pele escura, ela pararia de usar na hora, mas não era esse o caso.
O documentário revela várias histórias de amor pela pele negra, reforçando os traços que são desprezados em vários lugares, principalmente dentro da indústria audiovisual. Duas das convidadas compartilham sobre seus caminhos ao fazer testes e serem rejeitadas pois não há espaço para negros protagonistas, ou alegam não saber iluminar a pele negra. Uma das entrevistadas inclusive prefere ir em busca de trabalho no Reino Unido, onde as pessoas estão mais abertas a narrativas negras.
O único homem entrevistado é um fotografo, revelando a história da colorização dos filmes desenvolvida pela empresa Kodak, líder no segmento, a partir de fotografias de mulheres brancas, atendendo a demanda de enquadramento e iluminação de rostos caucasianos. A pele negra não foi pensada para ter destaque nos modernos filmes coloridos, já que quem dominava essa indústria eram os brancos e eles não tinham interesse em ampliar a variação de tonalidade de peles.
O fotografo ainda comenta sobre a cultura do casamento por encomenda, ao enviar a fotografia da pretendente para o possível noivo, mulheres negras eram percebidas como mais triste ou estranhas, já que não eram tão bem iluminadas, causando um certo estranhamento.
Isso reflete em toda a indústria audiovisual, onde por muito tempo não existiu interesse em desenvolver técnicas que beneficiassem a pele negra. Aí podemos voltar para um dos pontos do artigo que comecei comentando. Já que a mídia cria o imaginário coletivo de que a pele branca é melhor, funcionando como um portal de acesso a benefícios, parece ser justificável o alto consumo desses produtos embranquecedores. É aí que mais uma vez entendo como o audiovisual pode ser uma ferramenta poderosa, enaltecendo a pele negra, criando motivos para que nos vejam como portadores de beleza.
Beyoncé entendeu isso, em seu último filme Black is King, um dos segmentos é o clipe da canção Brown Skin Girl, uma ode a pele da mulher negra, uma mensagem para as meninas se amarem, perceberem que a cor de sua pele é linda, vem de uma poderosa linhagem ancestral. No clipe além da participação de sua filha Blue Ivy, estão a modelo Naomi Campbell e a atriz Lupita Nyong’o, segunda mulher negra a vencer um Oscar na categoria de melhor atriz coadjuvante.
Os impactos do audiovisual numa sociedade completamente voltada para a imagem, é enorme. É necessário assumir o controle de produção para virar o jogo, os efeitos da falta de representação são devastadores em diversos níveis e isso me preocupa bastante.

O curta Cores e Botas aborda a história de uma família negra de classe média alta nos anos 1980. Joana é a caçula e assim como várias crianças dessa década sonha em ser paquita da Xuxa. Ela vê a oportunidade de realizar esse sonho quando anunciam um teste em sua escola, mas é rejeitada justamente por ser negra. Da decepção nasce um novo sonho, a menina se depara com a fotografia, nascendo assim uma nova paixão. O filme mostra de forma bem sútil os mecanismos do racismo, deixando uma potente mensagem no final, ao pegar uma câmera Joana sabe que assim poderá escrever uma nova história para ela e os seus.

A cantora e atriz Thalma de Freitas em entrevista para a revista TPM no início do ano passado comenta um pouco sobre ser uma artista negra no Brasil e as motivações que fizeram com que ela fosse morar nos Estados Unidos. Thalma está no ar hoje na reprise da novela Laços de Família, onde deu vida a inesquecível Zilda, empregada doméstica de Helena. Na conversa ela comenta sobre os papeis comuns aos negros dentro da teledramaturgia e observa algumas mudanças. Longe da TV há alguns anos a artista foi indicada ao Grammy com seu disco Sorte! Ela também aparece sempre no twitter comentando a repercussão que a personagem teve nos anos 2000 e respondendo aos fãs.

Essa entrevista com o Lázaro Ramos me deixou muito emocionado, na conversa ele fala sobre um método de escrita que intitula de afetiva. O autor e ator comenta sobre a melhor forma de escrever histórias sobre a população negra, partindo do básico, a jornada do herói, aquele caminho que já tá bem estruturado nos vários filmes e livros que conhecemos, assim conseguimos inserir as pessoas negras dentro de histórias comuns, mas que não são lugares típicos de presença negra no audiovisual/ na literatura/ no teatro. Lázaro fala também sobre a sua carreira e sobre seu novo filme, ainda sem data de estreia.

Casa de Vó é uma série que aborda em seu enredo questões raciais, apresentando uma família negra e seus diversos conflitos. A vó em questão é ninguém mais ninguém menos que Margareth Menezes. As situações apresentadas se assemelham um pouco com as já vistas em Mister Brau, denunciando de forma cômica situações de racismo e falando sobre ela com a intenção de educar o telespectador. A produção é do Wolo TV e o primeiro episódio tá disponível de graça no site deles.

No programa Infiltrados no Cast, o Alê Santos conversa com Licínio Januário, o ator e criador do streaming Wolo TV, canal dedicado a produções negras. Na conversa ele fala sobre as dificuldades de produzir audiovisual negro no Brasil, as diferenças em relação a outros países, como Estados Unidos e os próximos passos do canal de streaming.

Esse texto na Revista Verberenas, fala sobre a formação de um olhar critico sobre o que consumimos da mídia. A partir de uma releitura sobre a obra A Bela e a Fera, a professora de estudos feministas apresenta uma nova visão sobre a história, aquele é um filme sobre abuso, e pior, é um filme ensinando que o abuso é permitido. A autora faz uma relação sobre a mídia e a nossa forma de consumo, não somos obrigados a desprezar tudo o que percebemos como errado, ninguém tá dizendo que é proibido rever ou gostar de A Bela e a Fera, mas é preciso estar atento e ser crítico ao que consumimos. O texto traz uma ótima reflexão com ilustração bem prática sobre o poder da mídia na nossa subjetividade, deixando claro que precisamos assumir o controle e refletir sobre o que chega até nós.

Até mais, e obrigado pelos peixes!

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Texto enviado por e-mail originalmente no dia 30 de janeiro de 2021.

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Victor Ramos

iyawo omo oxalá, escritor e roteirista, mestre em cinemas e narrativas sociais (ufs)