Nesta carta eu celebro a vida e a cidade.

(texto originalmente publicado na minha newsletter quinzenal, sobre tudo, sobre nada, enviada para os leitores no dia 15 de Março de 2021. Para assinar o conteúdo da newsletter basta clicar aqui e para conferir o arquivo de textos aqui.)

Victor Ramos
8 min readJan 31, 2022

Aracaju como é vista da janela de Camilla, março de 2020

Era um dia como hoje há vinte e nove anos que Rosa estava numa maternidade. Depois de longa espera e muitas dores, nascia as quatro e quarenta e cinco da manhã de um Domingo de sol ou chuva, afinal, as águas de março já estavam chegando para fechar o verão, o seu terceiro filho a quem ela deu o nome de Victor. Nove meses antes, ao perceber alterações no seu corpo, Rosa procura um médico com sua amiga, afinal depois de ter seu segundo filho havia se submetido a uma cirurgia para não engravidar mais, então de imediato a ideia de estar grávida novamente parecia um absurdo e foi isso que esse primeiro médico confirma. A senhora não está grávida, isso é um mioma.

Bom, eu sou esse mioma. Essa história está presente na minha vida desde que me entendo por gente, sempre que minha mãe falava sobre mim para alguém, conhecido ou desconhecido, ela comentava e reforçava de uma maneira irônica que agora o mioma tá aí me dando trabalho. Penso sempre nessa ida dela ao médico, mesmo sabendo que estava grávida, afinal já havia passado por outras gravidezes e sabia como era, mas parecia impossível pois já havia se passado seis anos desde a tal cirurgia. Depois foi explicado que pode acontecer da laqueadura se desfazer sozinha, é raro ( uma a cada duzentas mulheres), mas acontece.

Essa história vai ganhando diversas conotações ao longo da minha vida, confesso que há muito tempo não pensava nela, mas relembrando agora reflito muito sobre a necessidade de ter vindo ao mundo. Claramente fui resultado de um momento inesperado, minha vinda não era planejada nem foi muito festejada num primeiro momento, afinal é sempre um susto saber que vai ter mais uma boca para alimentar. Vendo agora de uma distância de quase três décadas, olhando para um mundo em que não existia minha presença e que agora não existe mais a presença de minha mãe, penso que cheguei aqui para ocupar um lugar.

Não sei se me faço claro nas palavras mas, hoje comemorando a vigésima nona volta ao sol encaro os pormenores de minha chegada ao mundo como uma constatação de força (não atoa Victor significa algo como vitorioso e forte) revelando uma necessidade de ocupar o mundo, de preencher os lugares, nem que seja a sua caixinha de e-mail.

Rosa e tia Beata em visita ao cristo, Rio de Janeiro, data desconhecida.

Era uma tarde de sábado fria de julho, precisamente o penúltimo dia daquele mês, no ano de 2011. Desembarcamos eu e meus tios na cidade do Rio de Janeiro, era a minha primeira vez ali e apenas mais um retorno a um lugar conhecido e de conforto para eles. A minha motivação de viagem se confundia entre uma visita a familiares e a realização de um sonho da versão Victor de 14 anos, ir ao show da Avril Lavigne.

Lembro da sensação de ver pela primeira vez aquela cidade tão amada no circulo familiar de onde vinham histórias alegres e contagiantes de passeios em lugares maravilhosos. Cresci, assim como qualquer brasileiro que não vive lá, com uma imagem imaculada daquela cidade, afinal o Rio de Janeiro é o lugar mais midiatizado do país, entendido tanto pelas telenovelas como pelo nosso cinema como o coração do Brasil.

Naquele tempo eu estava com 19 anos e a pelo menos 4 vivia entre uma crise depressiva e outra, naquele mês em particular estava num estado de espírito pouco propicio a uma viagem. Mas ao embarcar no táxi amarelo rumo a marina da glória, passando por lugares que só tinha visto antes na televisão ou em filmes, sentindo sob minha cabeça aquela vastidão azul do céu, respirando aquele ar frio e ainda assim convidativo, avistando de longe em alguns pontos os braços abertos do cristo como a me dar boas vindas, me senti pleno e feliz pela primeira vez em muito tempo.

Aquele era um sentimento estranho para mim, lembro de naquele momento abraça-lo como se minha vida dependesse disso e de certa forma dependia sim. Esse trajeto rápido de carro é a minha memória favorita da cidade maravilhosa, não pelo que vi, mas pelo que senti. Vivendo meses incapaz de sentir absolutamente nada me vi novamente vivo ao encarar as ruas do Rio de Janeiro. Os abraços dos familiares, o encontro pessoalmente com amigos virtuais e o show no dia seguinte, nada disso conseguiu superar esses minutos. Lembro que quando cheguei de volta a Aracaju falei pra minha psicóloga da época “ o Rio de Janeiro é a cura da minha depressão”. O carioca que me lê agora provavelmente deve tá rindo nesse momento, eu mesmo não concordo com isso, mas para aquele Victor naquele dia, essa era a verdade absoluta.

Foi aí que percebi como o espaço ao meu redor interage com o meu espaço interior ajudando a modelar os meus sentimentos.

Do outro lado do rio avisto Aracaju, Janeiro de 2020

Era um dia como esse há exatamente um ano em que me reunia pela última vez com alguns amigos numa mesa de pizzaria. Afinal, era meu aniversário. No dia anterior tinha sido notificado o primeiro caso de coronavírus em Aracaju. Algumas semanas antes recebemos a notificação do primeiro caso no Brasil. Eu olhava essas notícias e pensava que assim como outras doenças essa não causaria muito estrago, não afetaria a nossa vida, não mudaria em nada nossa rotina. Me recusei a pensar que alguma coisa poderia mudar. Como é louco pensar no mundo de antes com a inocência de quem não passou por uma guerra né?

Mas naquele Domingo sentado num restaurante com bastante pessoas ( coisas que parecem tão distante da minha realidade atual), com todo mundo na mesa comentando sobre o coronavírus, trazendo a informação de que até as novelas da Globo iriam parar de ser produzidas, pra você ter ideia da dimensão do problema, foi que percebi a gravidade do buraco em que estávamos entrando. Lembro de passar o dia inteiro angustiado, mesmo tomando banho de mar (saudades), mesmo abraçando cada um dos meus amigos queridos ( saudades saudades), era a visão do que estava por vim já me atormentando.

Esse dia, um dia como hoje há um ano, foi a última vez que peguei um ônibus em direção a cinelândia para curtir uma praia, foi a ultima vez que deixei a cidade me invadir, última vez que vi o céu de Aracaju da janela do 001, esse céu que não perde em nada para o da cidade maravilhosa. Claro que já estamos vivendo há um ano nessa pandemia e já precisei sair de casa algumas vezes, mas aquela sensação de liberdade, de abraço gigante que a cidade oferece, isso nunca mais voltou. Eu sinto falta da cidade. Eu quero abraçar a cidade.

Não existe céu como o de Aracaju, vista da cinelândia, Janeiro de 2020

Há algumas semanas voltei a fazer caminhada nas primeiras horas do dia percorrendo um caminho relativamente curto, mas suficiente. Voltei a me encontrar com a cidade, uma parte dela ao menos, todos os dias. Caminho ao lado do rio, converso com ela sobre a situação, faço pedidos, agradeço, dou uma choradinha emocionada toda vez que avisto o reflexo do sol em suas águas me cegando um pouco. Sou das águas afinal. São apenas alguns minutos fora de casa ao ar livre, com máscara e álcool em gel, assistindo de longe as pessoas lidando com suas vidas. O 001 passa por mim lotado, vejo os rostos aflitos pela janela, as máscaras não cobrem a agonia e o medo. Senhores e senhoras passam por mim voltando de suas caminhadas matinais, só dá pra ver seus olhos que já viram tanto, nutridos de alguma esperança. Avisto de longe as pessoas entrando e saindo do mercado central, o cheiro de peixe marcando o cenário. As máscaras no queixo, na mão ou completamente ausentes dos figurinos de alguns revelam a descrença ou a entrega total ao caos generalizado.

No caminho vou pensando em tudo isso, na minha chegada ao mundo, em minha mãe e a saudades que é eterna, nos meus familiares, nos meus amigos e a saudades que em breve vai ser transformada em reencontro, na presença ausente da cidade ao meu redor. Recordo das viagens que tive oportunidade de fazer e das vezes que fui confrontado por outros espaços urbanos, lembro da vez que chorei numa cidade estranha mas também dos sonhos realizados nelas. Lembro que o mundo tá em colapso, lembro do desgoverno atual, lembro que tenho um trabalho para escrever, um futuro a trilhar. Lembro também que muitas vezes não tenho força, que tenho medo, receio de não ver mais ninguém, de ficar doente, de que você fique doente. Mas, lembro de novo da cidade, do barulho, do cheiro, do céu! Não existe céu como o de Aracaju. Lembrar disso tudo não me conforta, mas é isso o que temos e sigo caminhando, abraçando de longe a cidade e recebendo de longe seu carinho, esperando a hora em que distanciamento social seja algo distante da nossa realidade.

Mercado central, visão do segundo andar no espaço do brechó, fevereiro de 2019.

Lugares perfeitos de Aracaju para ter um date com você mesmo ou com outra pessoa. Lista comentada pela Barbara Abril idealizadora do projeto CajuRuas no podcast Paralelismos.

O instagram aracajuanes trás visões da cidade de Aracaju.

“No Santo Antônio não faltavam momentos para celebrar seu padroeiro, e até hoje, já adulto, quando chega o dia treze de junho, chega bate um rebuliço no peito, saudades de percorrer aquelas ruas louvando o tão querido Antônio.” Crônica, ou tentativa de, minha sobre o bairro que nasci e onde vivo.

Até mais, e obrigado pelos peixes!

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Texto originalmente enviado por e-mail no dia 15 de Março de 2021.

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Victor Ramos

iyawo omo oxalá, escritor e roteirista, mestre em cinemas e narrativas sociais (ufs)