O que Kazuo Ishiguro busca?

(texto originalmente publicado na minha newsletter quinzenal, sobre tudo, sobre nada, enviada para os leitores no dia 30 de Abril de 2021. Para assinar o conteúdo da newsletter basta clicar aqui e para conferir o arquivo de textos aqui.)

Victor Ramos
9 min readJan 31, 2022

Quais são os pequenos tesouros que você guarda dentro dos seus livros?

Daiane, minha colega no twitter me enviou esse cartão postal de Londres em 2011

Recentemente estava relendo um dos meus livros favoritos Não Me Abandone Jamais de Kazuo Ishiguro, uma história onde memória é o plano de fundo, assim como em todos os livros que li do autor. Despertado pela trama fui curiosamente reler algumas cenas de outro livro dele e encontrei esse cartão postal de uma colega do twitter lá de 2011.Interessante como as coisas se intercalam, não lembrava do cartão postal nem de que tinha guardado dentro de um livro em que os personagens saem em uma jornada em busca justamente de suas memórias. Me coloquei a vasculhar todos os livros físicos que ainda tenho e achei algumas pérolas de lembranças de momentos que quase se apagaram pelo tempo.

Em Não me abandone jamais, os personagens estão em busca de reencontrar algo que imaginaram no momento de convívio mútuo. Acontece que esses personagens tem uma vida um tanto quanto peculiar, eles são clones. Nessa escola/orfanato, vivem os primeiros anos de suas existências e são treinados para entender basicamente o mundo que os aguardam, onde serão doadores de órgãos. Porém, esse lugar testa uma nova forma de lidar com esses seres a partir da interação com a arte. Todos eles sabem que são clones e que servem a um propósito maior e sabem que suas narrativas já estão escritas, mas a partir do contato com a arte vislumbram um futuro diferente, criam toda uma narrativa paralela. A narração do livro não dá muitas pistas e a inocência e medo dessas personagens transparecem por toda a primeira parte.

Isso também acontece em outro livro do autor, O gigante enterrado. Aqui somos transportados para a idade média, onde dragões convivem com humanos em um mundo que conhece a magia. Acontece que o dragão dessa história não está guardando um tesouro no alto de uma montanha, ele é responsável pela névoa que causa esquecimento em todos os moradores das regiões que estão sob o seu domínio. Os dois personagens centrais, um casal de idosos fofíssimos, embarca numa aventura muito similar a que o Hobbit Bilbo bolseiro de bolsão embarca. Na superfície esse livro parece uma grande homenagem a Tolkien, mas a medida que nos aventuramos por essas vilas, atravessamos rios e subimos colinas, encontramos o tema central das obras de Ishiguro: a busca pela memória perdida.

Em outra obra o autor retorna ao Japão e provavelmente a suas próprias memórias quando escreve Um artista no mundo flutuante, é claro que o tema das memórias e a nostalgia, ou falsa sensação de, está também presente. Retratando um período politico do Japão, país de origem do autor, ele insere um personagem que foi favorecido pelo regime em vigor num passado, mas nos dias que correm essa lembrança pode causar certo mal estar para ele e todos com quem se relaciona. Aqui também tem uma relação direta com o mundo das artes, a pintura especificamente, não atoa o título do livro. A memória nesse mundo novo se mostra traiçoeira, ela pode revelar uma atitude não mais aceita e representa um perigo eminente, ao mesmo tempo serve como marco de algo que não pode se repetir. É preciso muito cuidado com aquilo que se rememora. Mas, ainda assim as lembranças estão lá criando uma ilusão de tempo. O futuro visto do passado e o passado visto do futuro se confundem.

Nota fiscal de alguma coisa que comprei na panificação Regina em 2015

Quando eu leio livros físicos tenho o costume de marcar a página com qualquer coisa que tenha em mãos, pode ser um marcador bonitinho que veio de brinde ou a nota fiscal do pão que acabei de comprar na padaria. Isso é muito comum principalmente porque leio muito em ônibus (quando saia de casa e usava transporte público), por isso vira e mexe quando volto a algum livro na minha estante tem lá um pequeno tesouro. Uma lembrança em forma de papel salta das páginas me revelando alguma coisa que estava vivendo naquele período, e por um breve momento aquele Victor se encontra com esse Victor e com o Victor que ainda virá e todos eles se fundem nesse objeto. Tesouro da memória.

Certa vez fui a UFS me matricular na disciplina de TCC, estava emocionado, afinal, era minha última etapa naquela universidade que já havia me dado, entre muitas coisas, bastante memórias. Nesse dia o livro Norwegein Wood do Murakami me acompanhava e é justamente nele que anos depois de ter entregue o TCC e me formado encontro a guia de matricula. Provavelmente peguei duas por precaução. Quando abri o livro em 2020 em busca de fiapos de memórias e me deparei com esse papel, voltei no tempo, me confundi e embarquei também nas memórias do personagem que também volta no tempo para contar suas memórias do período de estudante universitário. Me vi parado em frente a estante com um filme passando pela cabeça. Nesse momento eu tinha encontrado a minha Norfolk.

Guia de matrícula da disciplina de TCC em 2016

Norfolk é a cidade que os personagens de Não me abandone jamais enviam suas lembranças na esperança de busca-las um dia, quando for possível. Na verdade é o lugar que quando crianças eles imaginam que os objetos perdidos vão. Quando adultos descobrem que não é bem isso que existe em Norfolk, talvez a única coisa que eles encontram lá seja o choque da decepção ao confrontar a realidade, ao mesmo tempo em que podem abraçar suas lembranças de um período inocente. Imaginar o futuro é sempre mais confortável do que viver nele. É isso que alguns personagens descobrem ao longo do livro.

O casal fofíssimo em sua jornada de caça ao dragão se deparam com uma questão incipiente, será que vale mesmo a pena voltar a lembrar? O que se perde é tão precioso que sempre arruma um jeito de retornar, mas a que custo? Quando os dois, depois de ter enfrentado vários perigos, percebem que o grande inimigo estava enterrado dentro deles mesmo é um choque. Assim como é um choque para nós leitores. O gigante enterrado em que o título faz menção, para mim, é justamente os tesouros que ao longo da vida vamos nos acostumando a enterrar em nosso quintal da imaginação. Aquela caixa que jogamos num canto da memória e nunca mais voltamos para abrir com medo do que vamos encontrar. Mas a névoa da amnésia se dispersa um dia.

Bilhete da mega-sena em 2016

Certa vez fui a casa lotérica com minha amiga e fizemos um jogo. Não ganhamos, uma pena. Mas quando abri um livro caiu também o bilhete com o comprovante e automaticamente lembrei de nós dois no estacionamento do Gbarbosa da Francisco Porto rindo e fazendo planos sobre o que iríamos fazer quando enfim ganhássemos a fortuna prometida. Ri de novo quando essa lembrança voltou para mim através desse bilhete, me vi de novo com Gabriela naquela tarde de um dia de semana em que por um momento achamos que a vida poderia ser fácil assim. Outra lembrança com Gabriela que ficou eternizada no livro de Alice no país das maravilhas é o recado em que peço para ter pressa com a leitura. Ao me deparar com o bilhete voltei as salas de aula do Águia, lugar onde minhas memórias do final da adolescência foram produzidas ao longo dos quatro anos que passei ali. As conversas sobre livros e filmes que tinha com os amigos moldaram algumas decisões sobre meu futuro. Ter me deparado com essa notinha no livro me fez acessar esses lugares novamente.

Recado pra Gabriela em 2008

Não importa se existiram coisas que prefiro apagar, afinal o ensino médio pode ser um lugar pavoroso pra se habitar, mas são minhas memórias. Assim como o personagem de Um artista no mundo flutuante não abre mão de recordar quem ele foi em um momento no mínimo nebuloso. Talvez a melhor solução seja apagar tudo e inventar um novo passado. As vezes até pode funcionar, mas sempre vai ter um livro com um tesouro guardado pra fazer essa ponte, ou, como no caso do personagem, sempre vai ter uma pintura ou uma casa. Os objetos físicos se tornam impossíveis de apagar. Quando essas memórias ganham formas físicas são como uma galeria que não se desfaz.

Em seus livros Kazuo Ishiguro elabora situações em que seus personagens sempre precisem se confrontar com as lembranças de um período específico de suas vidas, geralmente o momento em que define a sua personalidade. Quando me coloquei a buscar pequenos tesouros nos meus livros, influenciado pelo que senti ao reler uma de suas obras, fui em busca desse mesmo sentimento. Foi como construir uma máquina do tempo particular.

Irmã de geladeira comprado em São Paulo em 2014

O bilhete pedindo a devolução do livro no 1 ano do ensino médio, o imã de geladeira comprado na viagem a são Paulo, o bilhete da loteria feito com muita esperança, a nota fiscal dos doces da padaria Regina — saudades eternas!- o contrato final da graduação, são coisas que fui colocando pra marcar os livros que lia nos ônibus para chegar nesses lugares, a UFS, a lotérica, a casa de Gabriela, a padaria, enfim. Reencontrar esses pequenos objetos me trouxe memórias pequenas e até meio desnecessárias, mas que guardam um outro tempo, uma outra vida, um outro Victor. Assim como Kathy H., narradora em Não me abandone jamais, viaja por toda Inglaterra relembrando sua história, viajo eu por minha estante revivendo essas pequenas emoções do dia-a-dia.

Ps: não ganhei aquele concurso da mega-sena / Gabriela me devolveu o livro com mais de uma semana/ o contrato do TCC foi sim entregue.

Este texto foi escrito em Abril de 2020, ou melhor, o início e o final dele. Resolvi abrir o baú de coisas que escrevi durante os meses iniciais da quarentena e edita-los para ganhar o mundo. Reencontrar esse Victor assustado com o que estava acontecendo tem sido um exercício interessante.

O livro Não me abandone jamais ganhou em 2010 uma adaptação, estrelado por Carey Mulligan, Andrew Garfield e Keira Knightley.

Uma outra perspectiva da perda da memória a partir do desenvolvimento do alzheimer é elaborada no filme Meu pai. Vi recentemente e me deixou muito reflexivo, além de ter membros da minha família que tiveram essa doença, o que me apavora, pois posso também desenvolve-la, o filme chama atenção pela maneira singela e elegante em que as memórias do personagem principal vão se confundindo. Muito tocante.

Comecei a ler os livros da série Minha luta do escritor Karl Ove Knausgård, são livros em que ele rememora toda a sua vida com riqueza de detalhes, elaborando uma rica biografia. Ao longo da leitura me pergunto quais memórias recuperadas por ele são verdadeiras? Em alguns momentos ele deixa passar batido nomes de pessoas ou lugares, em outros relembra o cheiro e o som das paisagens. Um belo exercício de memória e narrativa.

Até mais, e obrigado pelos peixes!

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Texto originalmente enviado por e-mail no dia 30 de abril de 2021.

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Victor Ramos

iyawo omo oxalá, escritor e roteirista, mestre em cinemas e narrativas sociais (ufs)