Representações da escravidão nas telenovelas das 18h — perspectivas a partir dos primeiros capítulos de “Nos tempos do imperador” .

texto originalmente publicando na newsletter “tem negro?” no dia 10 de setembro de 2021.

Victor Ramos
10 min readJan 31, 2022

AS TRAMAS HISTÓRICAS DO HORÁRIO DAS 18H

No levantamento feito pelo pesquisador Joel Zito Araújo presente no livro “A negação do Brasil” o autor destaca que a maior participação de personagens negros nas décadas de 1960 a 1980 aconteceu exatamente na faixa horária das 18h. As tramas reservadas para esse horário eram em sua maioria adaptações de romances históricos, como a clássica obra A escrava Isaura (1976), um dos maiores sucessos da história das telenovelas, e obras como Cabocla (1979) e Sinhá Moça (1986). A temática da escravidão era abordada primeiro como um plano de fundo para a história dos mocinhos brancos, assim os escravizados eram mostrados como pessoas sem agência e sem vontade própria. Na trama adaptada por Gilberto Braga a escrava em destaque é uma mulher branca. Sobre isso Araújo comenta que a falta de ousadia na adaptação chama atenção:

“Entre o contexto político e social em que vivia o autor do romance e o contexto da época do adaptador da história, dos produtores e diretores da telenovela havia cem anos de distância, não se justificando, portanto, a falta de ousadia da emissora e a continuidade dos preconceitos do século XIX nos anos 70 do século XX.” (Joel Zito Araújo — A negação do Brasil)

O que pode explicar a falta de ousadia dos autores e produtores de uma das novelas de maior sucesso comercial no exterior é justamente o fato de que seria inaceitável para a grande população assistir o desenrolar de uma história conduzida pelas mãos de uma mulher negra lutando pela sua liberdade e do seu povo. Considerando que poucas produções ao longo dos 70 anos de produção folhetinesca televisiva ousaram atribuir o papel de protagonismo a pessoas negras. Coube a Pacto de Sangue (1989) escrita por Regina Braga tematizar de forma mais incisiva a movimentação feita por negros em busca de liberdade. Na trama ainda que não protagonizada por negros, eles tinham uma participação narrativa maior do que em outras produções. A novela foi planejada para ir ao ar como parte das comemorações do centenário da abolição.

A partir da organização de um grupo quilombola a narrativa evidenciava o importante papel que a população negra teve na sua própria busca por liberdade do sistema escravocrata, mostrando personagens conscientes de sua condição de escravizados e nutridos de desejos de mudar essa realidade através de suas próprias ações. Uma das subtramas era ambientada no Quilombo da Loana e contava com um grupo de mulheres liderados pela mãe de santo Quitinha interpretada por Ruth de Souza. Ainda assim a presença da “mulher branca salvadora”, arquetípico da princesa Isabel presente em várias novelas ao longo da história, continuava lá.

A década de 1980 é marcada por uma leve mudança na forma de representação nas tramas escravocratas do horário das 18h. Joel Zito destaca ainda sobre Pacto de Sangue que essa é a obra que mais tinha personagens negros até então, além disso apresentava casais pretos, mesmo que o protagonismo estivesse focado nos brancos. Sinhá Moça também marca uma maneira deferente de representar os negros, inclusive apresentando um casal afrocentrado, fugindo da tradicional representação de relações interraciais.

LADO A LADO — UMA CHAMA DE ESPERANÇA COM UMA NOVELA DOS SONHOS

É apenas em 2012 que uma telenovela de época exibida as 18h ousa em apresentar dois personagens negros como protagonistas. Trata-se de Lado a lado apelidada pelo ator Lázaro Ramos como uma “novela dos sonhos”. Sua trama não se desenvolvia nos tradicionais cenários de fazendas no interior do país, o plano de fundo era o Rio de Janeiro do início do século XX, os protagonistas não viveram em nenhum momento como escravizados, já que a narrativa se inicia 15 anos após a abolição. Isabel (Camila Pitanga), Zé Maria (Lázaro Ramos), Berenice (Sheron Menezes) e Caniço (Marcello Melo Junior), os casais de mocinhos e vilãos negros não nasceram na condição de escravizados, se beneficiando da Lei do Ventre Livre, já Tia Jurema (Zezeh Barbosa) e Seu Alfonso (Milton Gonçalves) viveram em fazendas e relembram esse passado em alguns momentos.

Por se tratar de uma obra ambientada no imediato pós-abolição, período pouco explorado no nosso audiovisual, Lado a lado se destaca justamente por dar voz aos personagens negros sem se afastar de uma típica narrativa folhetinesca. Ou seja, há vilões negros tentando desestruturar a vida dos mocinhos, há empecilhos no relacionamento do casal central, há vários mal-entendidos ao longo dos 154 capítulos. Porém, todos os personagens negros sabem de sua condição racial e levantam a voz, agem por si próprios. Além disso o Morro da providência, primeira favela do Brasil, é abordada na trama evidenciando a construção dessa comunidade sem recorrer a uma narrativa de exploração dos elementos da favela, como acontece em diversos produtos audiovisuais.

Lado a lado pode ser vista como um marco na teledramaturgia brasileira por apresentar personagens negros que falam por si sem a necessidade da figura de uma pessoa branca. Mesmo que a história seja dividida entre as lutas das jovens Isabel e Laura, uma negra e outra branca, mulheres livres que enfrentam todo o preconceito da sociedade na luta pela conquista de seus direitos. As aflições enfrentadas por Laura são compreendidas pela ótica da sociedade patriarcal e machista, ela luta para se impor enquanto uma mulher e provar que pode fazer tudo assim como um homem. Em seu percurso ela enfrenta o divórcio e a busca por um emprego, já Isabel além desses fatores precisa lidar com o estigma de sua cor, para se provar capaz de vencer na vida sendo uma mulher negra.

Uma grande herança que essa produção deixa para as telenovelas das 18h, além da forma fluida e nova de apresentar personagens negras, é a maneira narrativa de dar vida as personagens femininas. Todas as mulheres da narrativa são construídas evidenciando sua força para lutar pela conquista de seus direitos, um grande destaque é Tia Jurema que na trama é a representação das grandes mães de santo que em seus terreiros viram e ajudaram no surgimento do samba e foram primordiais na construção social da sociedade carioca e consequentemente do Brasil.

É com esse cenário que os autores Thereza Falcão e Alessandro Marson estreiam em 2016 a novela Novo Mundo, narrando as aventuras do imperador Dom Pedro I. O que chamou atenção na trama na verdade foram justamente as personagens femininas. A imperatriz Leopoldina roubou a cena e conquistou a graça do povo. Assim como a personagem Diara, mulher escravizada que conquista sua liberdade ao casar com um homem branco. Consciente de sua condição racial e do novo status adquirido com o casamento (mais uma vez as relações interraciais são celebradas como elemento de salvação), ela decide ajudar seus companheiros liderando um elaborado plano de fuga. Sua trama é dividida entre os amores de dois homens brancos e sua consciência política.

Novo Mundo tem em comum com Lado a lado a temática das questões de emancipação feminina, porém não segue o exemplo em outros campos. Além de consequentemente apresentar personagens negros em situação de extrema violência gratuita e relativos equívocos na maneira de representar essas personagens, a novela ainda trazia um núcleo de indígenas onde atores brancos representavam os personagens, prática conhecida como yellowface. Cito a trama de 2016 nesse texto justamente por ser a primeira parte de Nos tempos do imperador, escrita pelos mesmos autores e que traz em seu enredo coisas similares ao trabalho anterior.

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NOS TEMPOS DO IMPERADOR E A SÍNDROME DA PRINCESA ISABEL, A REDENTORA — CONSTRUÇÃO NARRATIVA E FALTA DE AÇÃO DE PERSONAGENS NEGRAS

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Logo nas primeiras cenas somos apresentados a Luísa, a Condessa de Barral, no velório de seu pai. Quando a câmera abre a imagem notamos um grupo de negros com suas vestes simplórias de um lado e elegantes homens de ternos pretos do outro. No meio o olhar penetrante de Mariana Ximenes. Nos primeiros diálogos entendemos que o homem sendo velado era um grande amante da cultura negra e tratava os escravizados “como se fossem gente”. Sua filha segue os mesmos caminhos, acredita que todos devam ser livres. Nas cenas seguintes ela acolhe um negro que fugia e ferido acaba indo parar em suas terras, trata-se de Jorge um dos protagonistas da trama que em sua fuga se depara com Pilar, mulher branca que sonha em ser médica — mais uma vez o recurso do casal interracial é usado sem a menor cerimônia.

Antes de decidir ir embora a Condessa liberta todos os escravizados da fazenda numa cena que poderia receber o adjetivo de “emocionante” por alguém que se deixa levar facilmente pelas emoções. Acontece que não tem nada de bonito na cena que tem como objetivo desenhar mais à frente a princesa Isabel como uma mulher que por compaixão libertou os escravizados, apagando assim toda a luta travada por mãos negras. Essa cena fundamenta a narrativa já que Luísa em breve será a preceptora das princesas do Brasil, ocupação que ela tem muito orgulho.

Nesse ponto chamo atenção dos leitores para o fato de que uma novela da Rede Globo, maior emissora de TV aberta do Brasil, com altos índices de audiência e que consegue entrar nos lares de 99% dos domicílios, consegue fazer com que uma narrativa como essa atinja o grau de verdade absoluta. E assim a ideia de que pessoas brancas como a Condessa de Baral e Isabel são as grandes responsáveis pelo fim do sistema escravocrata, o que não é verdade. A luta pela liberdade da população negra foi uma batalha longa e que contou sempre com a participação ativa do principal grupo interessado, os negros. As formas de resistência e lutas são inúmeras, vão desde as manifestações religiosas as grandes revoltas e guerras. Quando uma narrativa como essa apresentada numa telenovela reforça a participação branca como fator primordial nessa luta, ela está apagando uma história que precisa ser celebrada. Num país sem memória cenas como essas são extremamente perigosas e precisam ser contestadas, como aconteceu. É preciso acabar de vez com o mito da “Isabel, a redentora” elemento sempre presente nas tramas históricas das 18h e que só encontrou um caminho diferente em Lado a lado.

Quando foi anunciada, ainda em 2019, os autores destacaram que apesar da centralidade na vida do imperador Dom Pedro II, as personagens negras teriam grande destaque, já que o período em que a narrativa acontece corresponde a um momento muito intenso na luta abolicionista. Porém, o que vimos nas primeiras semanas de exibição não foi bem isso. Além do reforço aos brancos redentores, lugar comum nas telenovelas, a produção abusa de imagens de violência, não só ao reproduzir pessoas negras apanhando, mas ao inserir corpos negros como objetos de servidão com o intuito de demonstrar a perversidade de alguns personagens. Considero esse tipo de imagem tão violenta quanto uma chibatada em praça pública ou a reprodução de um mercado negro. Essas imagens reforçam a ideia de que nossos corpos servem apenas para isso, para servir como ventilador analógico. É possível que os roteiristas conseguissem imprimir nas cenas a mente perversa de tais personagens sem recorrer a humilhação dos corpos negros, algo que já acontece há 70 anos.

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Talvez o elemento que mais chama atenção na trama é a ambientação da Pequena África, local onde os negros libertos vivem e tem na figura de Dom Olu (Rogério Brito) e de sua esposa a mãe de santo Cândida (Dani Ornellas) as lideranças. Sendo amigo íntimo do imperador, Dom Olu, rei da pequena África, consegue atenuar a perseguição ao local e seria ele o responsável por ajudar a fazer a figura do imperador mais humanizada. Porém, na terceira semana de exibição assistimos estupefatos uma cena onde Pilar precisa explicar a Samuel que não existe racismo reverso, já que este estava indignado que a menina não foi aceita como moradora do quilombo. Mais uma vez é o reforço de um discurso que parte da supremacia branca. Além disso, o velho estereótipo da mulher negra que prefere se aliar aos brancos para se dar bem sozinha, dando as costas a sua comunidade -indo de encontro a uma forte filosofia africana- é mais uma vez reproduzido na figura da personagem Lupita (Roberta Rodrigues).

O que pudemos perceber a partir dos primeiros capítulos de No tempo do imperador é uma continuação das narrativas escravocratas que marcaram o horário das 18h. Sem seguir o exemplo tão bem sucedido e elogiado que os autores Claudia Lage e João Ximenes Braga -ambos brancos- executaram em Lado a lado, construindo uma narrativa que ali em 2012 parecia ser a abertura para uma nova forma de representação de negros nas tramas globais das 18h, mas que infelizmente podemos perceber que foi apenas um ponto fora da curva, assim como a tímida Pacto de Sangue. Será que precisaremos esperar mais 15 anos para que vejamos uma narrativa que fuja completamente desse lugar comum?

Ainda temos alguns meses de exibição pela frente, pelo que sabemos todos os capítulos já foram escritos e muitos gravados — o que classifica Nos tempos do imperador como uma obra fechada, ou seja, que não sofrerá influência do público ao longo da construção da narrativa, elemento que configura o DNA da telenovela brasileira. A pergunta que fica agora é: Como esses personagens se desenvolverão nas próximas fases? Ganharão agência e começarão a ter voz própria? Segundo um comentário da autora os capítulos que inicialmente foram ao ar não contavam com o apoio de um consultor sobre relações raciais, fato que só ocorreu depois de vários capítulos escritos. Só nos resta agora aguardar para ver e continuar apontando os equívocos e cobrando, só assim podemos minimamente galgar alguma mudança dentro das telenovelas das 18h.

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Victor Ramos

iyawo omo oxalá, escritor e roteirista, mestre em cinemas e narrativas sociais (ufs)