Um diálogo inicial sobre a presença negra nas telenovelas da Rede Globo — Breve introdução acerca da representação racial.

Texto originalmente enviado pela newsletter “tem negro” no dia 20 de Agosto de 2021.

Victor Ramos
7 min readJan 31, 2022

Por causa do racismo a presença de negras e negros em produtos audiovisuais, seja para o cinema ou televisão, é inferior a população branca e quando ocorre é revestida de estereótipos que visam desenhar um lugar específico para a população negra, um lugar marginalizado. Geralmente essas presenças são representadas em personagens subalternos, não havendo interesse em explorar as suas múltiplas subjetividades. Exemplos não faltam na nossa cinematografia e teledramaturgia, desde a presença das personagens sempre caricatas de Grande Otelo nas chanchadas, passando pelo olhar branco hegemônico do movimento Cinema Novo, chegando até os dias atuais com filmes que exploram os ambientes comunitários como um espaço de disputas violentas apenas.

É claro que há em cada etapa desse processo a força e presença de profissionais negros que lutam para erguer sua voz e transformar as imagens, fazendo uma intervenção crítica a partir de um olhar opositor, para citar a pensadora estadunidense bell hooks. O próprio ator Grande Otelo lutava para renovar esse olhar, na medida em que lhe era possível. No cinema cineastas, atores, homens e mulheres negras aos poucos buscaram se encaixar em uma cinematografia marcada pelo olhar do branco. Na televisão a força imperativa da política de branqueamento, que consistia em apagar simbolicamente a presença negra, é uma barreira ainda mais difícil de ser quebrada, mas observamos uma lenta progressão. Nesse primeiro texto trago um breve levantamento introdutório sobre a presença negra na Rede Globo, emissora que detém a maior porcentagem de audiência. Em próximos textos estenderemos esse diálogo.

temnegro

A post shared by @temnegro

A política do branqueamento imperou por muito tempo no audiovisual brasileiro, podemos observar melhor nas emissoras de televisão, onde a população negra não tinha poder para se organizar de forma a cobrar pelos espaços representativos, cabendo assim uma disputa silenciosa. Atrizes, atores, produtores, diretores e outros profissionais, sempre brigaram em busca de mais espaço de participação. Dias Gomes, Janet Clair e Manoel Carlos, novelistas autores de vários sucessos na emissora, foram alguns dos principais nomes a aderir de alguma forma a demanda desses profissionais. Segundo levantamento feito pelo cineasta e pesquisador Joel Zito Araújo em seu livro e documentário A negação do Brasil (Editora Senac, 2019), as novelas escritas por esses três autores apresentavam maior percentual de personagens negros em situações que não envolvessem a escravização, lugar comum para as tramas do horário das 18h marcados por novelas de época.

Foi Janet Clair quem deu o primeiro papel de “doutor” engravatado a Milton Gonçalves na novela Pecado Capital (1975). Atendendo ao pedido feito pelo ator que sentia a necessidade de dar vida a outros tipos de personagens. O que observamos na trama é que mesmo vestindo terno e gravata e sendo um psiquiatra, o personagem não mantinha nenhuma relação com outros personagens negros. Sua relação amorosa, com uma mulher branca, não foi bem aceita pelo público, dado que revela a mentalidade racista da época. Manoel Carlos no final dos anos 1990 aborda a mesma temática do casamento inter-racial em sua novela Por amor (1997). Maria Ceiça dava vida a personagem Marcia que vê seu casamento entrar em crise após sua gravidez, já que para seu marido branco a possibilidade de ter um filho negro era inaceitável. O casal volta a ficar em paz após o nascimento do bebê, branco como o pai. Através dessa subtrama o autor jogou luz sobre a sociedade mostrando seu racismo estrutural, ainda que de forma branda. No mesmo ano Anjo mau (1997) trazia uma subtrama similar onde a neta rejeitava a avó por ser negra. A cena em que a atriz Taís Araújo, recém contratada pela emissora após protagonizar na Rede Manchete Xica da Silva (1996), fala abertamente sobre racismo e pertença racial mostra uma tentativa de inclusão ainda muito incipiente.

É apenas nos anos 2000 que a mesma atriz assume o posto de protagonista na novela Da cor do pecado (2004) e anos depois assume o papel de Helena na novela Viver a vida (2009) de Manoel Carlos. bell hooks na introdução do seu livro “Olhares negros — raça e representação” (Editora Elefante, 2019) chama atenção para o fato de que coletivamente fizemos pouco ou nenhuma revolução em relação as questões que envolvem a representação racial nas mídias (p. 32). Ainda somos bombardeados por imagens onde a supremacia branca mantém a sua dominação e relevância. Ocasionalmente encontramos alguns avanços, em relação a telenovelas tivemos apenas em 2004 a primeira protagonista negra da Rede Globo no horário das 19h, e em 2009 as 21h, ambas produções protagonizadas pela já citada Taís Araújo. No horário das 18h Camila Pitanga protagonizou sua primeira novela também em 2009, o que levou na ocasião a acreditar em um gradativo aumento da presença de negras e negros ocupando papéis de destaque, fato que não ocorreu.

O percentual da presença negra em telenovelas na emissora continua muito pequeno, no período analisado pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa (GEMAA)1 apenas 10% dos personagens centrais das telenovelas eram ocupados por negros ou pardos. Além disso poucas atrizes ocupam o papel de maior destaque nas tramas, apenas as já citadas Taís Araújo, Camila Pitanga e Juliana Paes tiveram papéis de protagonistas em telenovelas da emissora. Sendo que do período que correspondem de 1995 a 2014 apenas 4% das tramas eram protagonizadas por mulheres não brancas.

Ao analisarmos as produções que foram veiculadas pela emissora entre 2010 e os primeiros meses de 2020, notamos que das 65 novelas que foram ao ar, apenas 11 eram protagonizadas por negros. A maior diferença desses dados para os trazido por Araújo em sua análise que abarca desde a década de 1960 até o final de 1990, é a maior participação de negras e negros nas subtramas. Nos últimos dez anos há pelo menos dois personagens negros em cada produção, chegando a contar com até treze personagens nas novelas Lado a lado (2012) e Bom sucesso (2019). Porém, esses números não representam uma verdadeira mudança, já que muitos desses personagens ainda são representados em posições subalternas.

A pergunta que fica é: de que forma esses personagens estão sendo representadas? De que maneira suas histórias estão sendo narradas? Qual a perspectiva assumida por esses personagens? Mesmo atingindo o posto de protagonista ou antagonistas (vilões, vilãs), negras e negros ainda assim são colocados em situações de humilhação, basta lembrar da cena em Viver a vida em que em plena semana da consciência negra, a Helena de Taís Araújo leva um tapa na cara ao pedir perdão de joelhos para a mãe de sua rival. Essa cena especifica causou enorme comoção, chamando atenção dos movimentos negros e outras entidades que cobravam mais uma vez da emissora uma resposta sobre a altivez e agência de personagens negros em suas produções.

Esse fato remete ao ocorrido em 1994 na exibição de Pátria Minha, em que o personagem interpretado por Tarcísio Meira humilha o seu funcionário negro. Em seu discurso há alusão de teorias racistas justificando a subordinação dos negros a questões biológicas. Na ocasião a emissora foi notificada judicialmente e foi obrigada a exibir uma cena em que duas personagens negras conversam sobre o ocorrido, orientando os telespectadores de que o que havia acontecido foi racismo. Os movimentos negros a época alegara que o fato do rapaz ouvir todo o discurso calado sem nenhum contraponto argumentativo na trama, representava uma situação degradante para toda a população negra no país. Essa foi a primeira vez que a Rede Globo foi noticiada judicialmente em relação a questões raciais, fato que pode ser explicado pelo fortalecimento dos movimentos negros nos anos 1970 e mais abertamente na década de 1980.

Edileusa Penha de Souza, pesquisadora e cineasta negra, afirma em sua tese “Cinema na panela de barro: mulheres negras, narrativas de amor, afeto e identidade” (2013)2 que os movimentos negros sempre foram fundamentais na discursão da representação racial nos meios de comunicação. Não à toa, à medida que foram se fortalecendo, com a abertura política e redemocratização, as cobranças por parte dessas organizações também foram crescendo. Mas dois fatores se fazem importante no início dos anos 2000 para a representação racial nas telenovelas da Rede Globo, os manifestos “Dogma Feijoada”3 do cineasta Jeferson De, que estabelecia regras para as narrativas audiovisuais que traziam personagens negras, e o “Manifesto de Recife”4, onde atores, atrizes, produtores, diretores e outros profissionais negros do audiovisual assinaram uma carta-manifesto cobrando a presença negras nas produções cinematográficas e televisivas.

Acredito que não seja apenas uma feliz coincidência a personagem Preta de Souza ser a protagonista da trama das 19h em 2004. Percorremos um caminho extenso, desde as pioneiras Lea Garcia, Zezé Motta e Ruth de Souza, esta que inclusive é de fato a primeira protagonista negra da emissora na telenovela A cabana do pai Tomás (1969). Produção que usou do blackface na caracterização da sua personagem masculina, sofrendo muitas retaliações. Ruth de Souza em depoimento para o documentário A negação do Brasil (2000)5 afirma que havia uma pressão muito grande por seu nome ser o primeiro creditado na abertura da novela, as outras atrizes brancas exigiram que sua participação fosse cada vez menor, até ser quase completamente apagada. A participação dessas grandes atrizes, assim como dos atores negros pioneiros como o já citado Milton Gonçalves, Grande Otelo, Zózimo Bulbul entre outros, foram fundamentais para pavimentar uma discussão sobre representação racial na telinha. Ainda que sua manifestação fosse branda, era pertinente.

Mas, é preciso estar atento, ainda que ocorreram modificações nos últimos 20 anos, precisamos driblar das armadilhas e entender as manifestações por trás dessas novas formas de representação negras que tem ocorrido. É preciso manter o olhar crítico em relação a essas produções. Essa é nossa intenção, criar esse diálogo aberto e atento para a presença negra nas narrativas audiovisuais. Como já dito, nosso foco é a televisão brasileira, mas para entende-la é preciso compreender toda a cadeia audiovisual, por isso também estenderemos as nossas análises a outros produtos.

Share Tem negro?

Share

1

A raça e o gênero nas novelas dos últimos 20 anos

2

Cinema de Barro: mulheres negras, narrativas de amor, afeto e identidade.

3

Dogma Feijoada a invenção do cinema negro brasileiro (Noel do Santos Carvalho e Petrônio Domingues, 2018)

4

Cinema negro brasileiro (Petrônio Domingues, 2011)

5

A negação do Brasil — Documentário (Dir. Joel Zito Araújo, 2000)

--

--

Victor Ramos

iyawo omo oxalá, escritor e roteirista, mestre em cinemas e narrativas sociais (ufs)